MLS – LAW AND INTERNATIONAL POLITICS (MLSLIP)

http://mlsjournals.com/ MLS-Law-International-Politics

ISSN: 2952-248X

(2024) MLS-Law and International Politics3(1), 36-50. 10.58747/mlslip.v3i1.2474

A INTERPRETAÇÃO DO ART. 31, § 3º, "C", DA CV/69, NA APLICAÇÃO DO DIREITO DA OMC AOS APC, NO DEI

Adriana Capriles
Universidad Europea del Atlántico (Brasil)
adriana.capriles@hotmail.com · https://orcid.org/0009-0003-6508-2078

Recebido: 13/11/2023 Revisado: 21/02/2024 Aceito: 14/03/2024

Resumo: O fenômeno do regionalismo enfraqueceu o sistema multilateral de comércio internacional, administrado exclusivamente pela Organização Mundial do Comércio. Tratou-se de preencher uma lacuna jurídica existente. A análise do alcance da expressão “a relação entre as partes”, constante no artigo 31, § 3º, parte final, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, foi feita apenas quanto aos acordos preferenciais de comércio. Ao delimitar o estudo, para restringir a pesquisa, foi possível colacionar a interpretação do dispositivo específico do “Tratado dos tratados”, ao direito aplicável à Organização Mundial do Comércio. Dividida em cinco partes principais, a pesquisa começou com a análise da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969. Após, concentrou-se na Organização Mundial do Comércio. Foram analisados os Tratados de Livre Comércio, como gênero dos Tratados Internacionais e os Acordos Preferenciais de Comércio, como espécie. Foram explorados o fenômeno do regionalismo e a crise do multilateralismo da OMC. Em último lugar, analisou-se o Direito Econômico Internacional e a jurisdição econômica internacional administrada pela OMC. Justificou-se a tese jurídica de que, em sede de controvérsias econômicas internacionais, quando dois ou mais Estados-partes firmam entre si uma interpretação, em um acordo preferencial de comércio, dita interpretação não pode ser usada para interpretar um dispositivo da OMC. A jurisprudência da OMC pode ser usada nas jurisdições econômicas internacionais regionais, mas a recíproca não é verdadeira.

Palabras-chave: tratados internacionais, interpretação de tratados, multilateralismo, direito econômico internacional, direito internacional.


THE INTERPRETATION OF ART. 31, § 3, "C", OF CV/69, IN THE APPLICATION OF WTO LAW TO APCS, IN THE DEI

Abstract: The phenomenon of regionalism has weakened the multilateral system of international trade administered exclusively by the World Trade Organization. The filling of aim was to fill an existing legal gap. The analysis of the scope of the expression “the relationship between the parties” in Article 31, paragraph 3, final part, of the 1969 Vienna Convention on the Law of Treaties was carried out only with regards to preferential trade agreements. By delimiting the study to narrow the research, it was possible to collate the interpretation of the specific provision of the “treaty of treaties”, to the law applicable to the World Trade Organization. Divided into five main parts, the research began with the analysis of the 1969 Vienna Convention on the Law of Treaties. It the focused on the World Trade Organization. Free Trade Agreements were analysed as a genus of the International Treaties and Preferential Trade Agreements as a species. The phenomenon of regionalism and the crisis of WTO multilateralism were exploited. We analysed International Economic Law and the international economic jurisdiction administered by the WTO. Justified the legal thesis that, in international economics controversies, when two or more State Parties sign an interpretation among themselves, in a preferential trade agreement, that interpretation cannot be used to interpret WTO provisions. WTO jurisprudence can be used in regional international economic jurisdictions, but the reverse is not true.

Keywords: international treaties, treaties interpretation, multilateralism, international economic law, international law.


LA INTERPRETACIÓN DEL ART. 31, § 3, "C", DE LA CV/69, EN LA APLICACIÓN DEL DERECHO DE LA OMC A LOS APC, EN LA DEI

Resumen: El fenómeno del regionalismo ha debilitado el sistema multilateral de comercio internacional, administrado exclusivamente por la Organización Mundial del Comercio. El objetivo era colmar una laguna jurídica existente. El alcance de la expresión "la relación entre las partes", contenida en la parte final del apartado 3 del artículo 31 de la Convención de Viena sobre el Derecho de los Tratados de 1969, se analizó únicamente en relación con los acuerdos comerciales preferenciales. Al delimitar el estudio para acotar la investigación, fue posible relacionar la interpretación de la disposición específica del "Tratado sobre los Tratados" con el derecho aplicable a la Organización Mundial del Comercio. Dividida en cinco partes principales, la investigación comenzó analizando la Convención de Viena sobre el Derecho de los Tratados de 1969. A continuación, se centró en la Organización Mundial del Comercio. Se analizaron los Acuerdos de Libre Comercio, como género de Tratados Internacionales, y los Acuerdos Comerciales Preferenciales, como especie. Se estudió el fenómeno del regionalismo y la crisis del multilateralismo de la OMC. Por último, se analizó el Derecho Económico Internacional y la jurisdicción económica internacional administrada por la OMC. Se justifica la tesis jurídica de que, en los litigios económicos internacionales, cuando dos o más Estados parte se ponen de acuerdo sobre la interpretación de un acuerdo comercial preferencial, esta interpretación no puede utilizarse para interpretar una disposición de la OMC. La jurisprudencia de la OMC puede utilizarse en las jurisdicciones económicas internacionales regionales, pero lo contrario no es cierto.

Palabras clave: tratados internacionales, interpretación de tratados, multilateralismo, derecho económico internacional, derecho internacional.


Introdução

Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969

As relações internacionais entre Estados ocorrem por meio de tratados internacionais. Referidos tratados são regidos pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, por ser ela o diploma legal internacional especificamente criado para este fim, pela comunidade internacional. Dentre os diversos assuntos relacionados aos tratados internacionais, referido diploma trata da interpretação dos tratados internacionais, em seu artigo 31 e parágrafos, considerado um dos mais frequentes motivos geradores de controvérsias econômicas internacionais.

A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 é o Diploma Internacional, que trata das normas para os Tratados Internacionais, firmados por escrito, entre Estados. Por isso, ela ficou conhecida como o “Tratado dos Tratados”. É uma das principais fontes de Direito Internacional Público e, por isso, ficou conhecida como “Tratado Fonte”.

São três os principais motivos, porque surgem controvérsias econômicas internacionais entre Estados. A interpretação de Tratados Internacionais, as incompatibilidades entre medidas em matéria tributária criadas pelos Tratados de Livre Comércio e os Acordos da OMC, bem como medidas protecionistas macroeconômicas, como as barreiras não tarifárias. O Comércio Internacional move o mundo e é de suma importância para as nações, assim como para os atores econômicos privados.

Os meios de comunicação e as tecnologias tiveram uma importância sem precedentes para o comércio internacional. Facilitaram referido comercio e tornaram a economia global muito dinâmica. Esse dinamismo ajudou a criar organismos globais, que convergem seus objetivos macroeconômicos, por meio dos tratados internacionais. (FUNIBER, s.d.)

O âmbito multilateral de comércio internacional foi regido de forma limitada pelas regras do provisório General Agreement on Tariffs And Trade ou GATT. Criado em 1947, o GATT vigeu de 1948 até 1994. A partir de 1995, referido âmbito comercial passou a ser administrado exclusivamente pela Organização Mundial do Comércio, que absorveu o GATT-47, após alterá-lo para GATT-94.

O âmbito regional de comércio internacional existe há séculos. Não existe uma autoridade superior que o administre, portanto, as controvérsias comerciais internacionais regionais dependem de diferentes foros econômicos internacionais.

A cooperação regional é consubstanciada por meio dos Acordos Regionais de Comércio, que apresentam-se de diferentes formas, como os Tratados de Livre Comércio, os Acordos Preferenciais de Comércio e os Acordos Preferenciais Profundos ou Mega Acordos.

A pesquisa objetivou criar uma tese jurídica, capaz de explicar a interpretação do artigo 31, § 3º, parte final, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, para definir quem são as partes das relações a que alude referido dispositivo e determinar se as partes podem aplicar uma interpretação, firmada entre elas, ao final de uma controvérsia econômica internacional em sede de um Acordo Preferencial de Comércio, para interpretar um dispositivo da Organização Mundial do Comércio.

O estudo definiu quem são essas partes da relação, após analisar a Convenção. Explicou o surgimento e o funcionamento da OMC, partindo de seu antecessor, o GATT. Apontou as principais diferenças entre os Tratados de Livre Comércio e os Acordos Preferenciais de Comércio, bem como entre os âmbitos de comércio internacional. Analisou a crise do multilateralismo, em face do fenômeno do regionalismo. Explicou o objetivo do Direito Econômico Internacional, com ênfase na jurisdição multilateral da OMC. Esclareceu o direito aplicável à organização e como é produzida sua jurisprudência.

Organização Mundial do Comércio

A Organização Mundial do Comércio é uma organização econômica internacional, por isso, está inserida no Direito Econômico Internacional. Ela integrou os Princípios do Direito Internacional comum e os Princípios Multilaterais do GATT de 1947, considerado seu predecessor.

Criada em 1994 com setenta e seis Estados-membros, a organização possui, atualmente, cento e sessenta e quatro Estados-membros. Ela é o único Organismo Internacional, encarregado de administrar e estabelecer as regras de comércio internacional, entre Estados e Territórios Alfandegários Independentes.

A Organização Mundial do Comércio possui uma estrutura institucional permanente, formada por uma secretaria e quatro níveis de decisão. O 1º nível é a Conferência Ministerial, seu órgão máximo; o 2º nível é constituído de três organismos principais, que são o Conselho Geral, o Órgão de Solução de Controvérsias ou OSC e o Órgão de Revisão de Políticas Comerciais ou ORPC; o 3º nível engloba os Acordos de sua estrutura orgânica, que são o GATT, o GATS, o TRIPS, o SPS e o TBT; e, por fim, o 4º nível é formado pelos Comitês e Grupos de Trabalho. A Conferência Ministerial e o Conselho Geral aplicam o Princípio Multilateral do Consenso de forma positiva e o Órgão de Solução de Controvérsias o aplica de forma negativa ou invertida.

O Órgão de Solução de Controvérsias é um mecanismo único e, bastante complexo, porque ele aplica, ao mesmo tempo, Princípios do Civil Law, quanto aos seus próprios acordos comerciais e Princípios do Common Law, quanto à sua própria jurisprudência. Possui natureza jurídica adjudicatória. Ele é o guardião do Sistema de Solução de Controvérsias e foi jurisdicionalizado pela Organização Mundial do Comércio. Possui a primazia jurídica das normas procedimentais e a coercibilidade, ao autorizar a aplicação de medidas de retorção por seus Estados-membros. O Órgão de Solução de Controvérsias administra e é orientado pelo Entendimento Relativo às Normas Procedimentais sobre a Solução de Controvérsias, seu marco normativo inicial. O OSC é formado pelos Painéis, que correspondem à 1ª Instância e pelo Órgão de Apelação, que corresponde à 2ª Instância, ambos de natureza jurídica judicial.

Não cabe à OMC se insurgir nas decisões proferidas por outras jurisdições econômicas internacionais regionais e vice-versa, porque referidas jurisdições são concorrentes. Os acordos regionais de comércio tratam de questões diferentes, por vezes, mais amplas do que tratam os acordos multilaterais e plurilaterais da OMC.

Ao jurisdicionalizar seu sistema de solução de controvérsias, a OMC deixou a aplicação de seus dispositivos e acordos, para o crivo do Princípio da Tomada de Decisão por Consenso de seus Estados-membros. Referido consenso, por vezes, é negativo ou reverso, por vezes, é positivo. O Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, através dos painéis e do Órgão de Apelação dependem do consenso negativo. A Conferência Ministerial e o Conselho Geral dependem do consenso positivo.

O Sistema de Solução de Controvérsias multilateral da OMC é vitorioso, porque consegue compelir ao cumprimento de suas normas e regras, assim como ajuda a evitar, que conflitos comerciais se proliferem entre as nações, em nível global.

Contudo, referido sistema vem sofrendo críticas. Vem sendo advogada sua reforma estrutural, que deve ser multilateral, o que tem sido difícil desde a Rodada Doha. Está cada vez mais difícil alcançar o consenso entre os Estados-membros da OMC. Essa dificuldade tem causado entraves na organização e chegou a paralisar seu Órgão de Apelação desde 2019.

Ainda assim, é o sistema escolhido pelos países, para dirimir suas controvérsias econômicas internacionais, apesar da existência de outras jurisdições. Alguns Estados-membros da OMC, na qualidade de partes signatárias de acordos preferenciais de comércio, valem-se de interpretações firmadas entre eles, ao término de controvérsias regionais, para interpretar dispositivos daquela organização. Entretanto, a OMC não aceita referida prática, por entender impertinente essa aplicação no âmbito multilateral.

Apesar do direito aplicável à OMC não se confundir com o direito aplicável aos Acordos Preferenciais de Comércio, ambos dependem dos sistemas de solução de controvérsias, existentes nos seus respectivos âmbitos. Em alguns casos, existem obrigações comuns entre os acordos multilaterais e os acordos regionais. Isso ocorre, principalmente, nos acordos preferenciais profundos (de Carvalho e Salles, 2022).

Tratados de Livre Comércio

Os Tratados de Livre Comércio são gêneros de Tratados Internacionais, de vigência indefinida, bilaterais ou plurilaterais. Referidos Tratados são considerados Acordos Regionais de Comércio, assim como, Acordos Comerciais de segunda e terceira geração, para criarem, principalmente, Zonas de Livre Comércio. Eles são usados, primordialmente, para a liberalização do comércio internacional, por meio da redução ou eliminação de tarifas alfandegárias, de forma recíproca, entre seus Estados signatários.

Os Tratados de Livre Comércio não criam nem revogam tributos. Todavia, as medidas que criam nessa temática, geram incompatibilidades com as regras da Organização Mundial do Comércio.

Os Acordos Preferenciais de Comércio são espécies do gênero Tratados de Livre Comércio. Em sua maioria, são plurilaterais. Firmados entre um número reduzido de países ou grupos específicos, são mais céleres e menos burocráticos, que os Acordos Comerciais da Organização Mundial do Comércio.

Contudo, os Acordos Preferenciais de Comércio são considerados uma derrogação das regras da Organização Mundial do Comércio. Por isso, devem ser usados sob reserva, na forma de exceção, pautados no artigo XXIV, do GATT-94, quanto aos bens, para criarem Zonas de Livre Comércio; ou pautados na cláusula de habilitação, do GATT-94, quanto aos subsídios, como isenção ao artigo I, do GATT-47; e, por fim, pautados no artigo V, do GATS, quanto aos serviços.

Na forma de Acordos Profundos ou Mega Acordos ou, ainda, Megablocos são considerados Acordos Comerciais de última geração, porque vão além das temáticas de ordem puramente econômica. Nestes casos, podem ser Acordos OMC Plus, ao se aprofundarem nas regras já existentes na OMC; ou Acordos OMC Extra, para além dessas regras, ao criarem regras inexistentes no comércio global, como é o caso das áreas políticas e fluxos comerciais.

Regionalismo X Multilateralismo

A Organização Mundial do Comércio enfrenta uma crise sem precedentes. Os interesses globais e as estratégias de negociação já não são mais as mesmas de 1994, quando foi criada a organização. O fenômeno conhecido como regionalismo é atribuído à proliferação de acordos regionais. Essa proliferação preocupa a OMC, porque o âmbito multilateral começou a perder espaço para o âmbito regional. Contudo, outros problemas estruturais do multilateralismo são apontados como os diversos fatores, atribuídos à crise desse regime.

A coexistência entre os âmbitos de comércio internacional é inevitável. Ela levou à fragmentação do multilateralismo, com seu consequente enfraquecimento, ao passo que, fortaleceu o regionalismo, diante do aumento da cooperação regional, ao redor do mundo. Referida cooperação deixou de limitar-se à simples liberalização dos mercados, pois passou a servir a objetivos econômicos, políticos, geopolíticos, comerciais e de segurança.

O Regionalismo engloba, especialmente, a proliferação exacerbada de Acordos Preferenciais de Comércio. Ocorreu em três momentos principais, entre 1950 e 1970, a partir de 1990 e a partir de 2001, coincidindo com a Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio.

A expansão do fenômeno da globalização, somada aos avanços tecnológicos, de comunicação e logísticos fez surgir as Cadeias de Valor Globais. Estas últimas aliadas à falta de consenso na Organização Mundial do Comércio, causou um sentimento de imediatismo entre os Estados-membros da organização que, em curto prazo, migraram para o sistema regional de comércio internacional, a fim de alcançarem seus objetivos comerciais.

Todavia, referida migração trouxe diversos problemas ao comércio internacional. Dentre os principais, temos a implementação de regras; a sobreposição de membros; as incoerências entre os Acordos Regionais de Comércio e a OMC; a fragmentação e o enfraquecimento do regime multilateral; os impactos negativos nos fluxos comerciais, pelo aumento nos custos de transação, especialmente quanto aos certificados de origem; o Spaguetti Bowl, que é a proliferação dos Acordos Plurilaterais, que não substituíram os Acordos Bilaterais já existentes, mas, foram se somando e formando esse emaranhado de normas e regras de comércio internacional; e, por fim, o Fórum Shopping, que é a criação de mecanismos de solução de controversias, em cada um dos Acordos Regionais de Comércio.

Apesar da criação do Princípio do Single Undertaking, durante a Rodada Uruguai e do fim do GATT à la carte, medidas compensatórias que haviam sido criadas, para resolver o problema de desequilíbrio de competitividade entre os países, não foram derrubadas pelas medidas protecionistas macroeconômicas, como é o caso das barreiras não tarifárias.

Os temas ambientais e de ordem pública geram desvios de comércio, porque os governos dos Estados-membros valem-se das regras de exceção, autorizadas pela Organização Mundial do Comércio, para desviarem os focos das negociações regionais, criando regras paralelas às multilaterais.

Os temas mais sensíveis, que tinham a liderança das negociações multilaterais atribuídas ao QUAD, bloco formado pelos Estados Unidos, Canadá, União Europeia e Japão foi substituído pelo Grupo G-20, liderado pelo Brasil, quanto à agricultura e o Grupo NAMA-11, liderado pela África do Sul, quanto ao acesso a mercados.

Os países em desenvolvimento, que somam dois terços dos Estados-membros, exigem tratamento preferencial na Organização Mundial do Comércio, porém, constituem a maioria. Há, ainda, a falta de capacidade da organização de modernizar suas próprias regras.

O embate entre os Estados Unidos e a China, como as duas maiores potências econômicas mundiais; levou à paralisação do Sistema de Solução de Controvérsias, em 2019, face aos reiterados vetos norteamericanos, para a nomeação de novos juízes do Órgão de Apelação da Organização Mundial do Comércio.

A adesão da China à Organização Mundial do Comércio, em 2001, razão pela qual deveria ter se tornado uma economia de mercado, não ocorreu. Distorção causada pela forte influência do governo chinês, no comércio global. Por fim, há a falta de total transparência das políticas comerciais nacionais, dos Estados-membros da Organização Mundial do Comércio.

Direito Econômico Internacional

O Direito Econômico Internacional, ramo autônomo do Direito Internacional e essencialmente público, rege as relações comerciais internacionais entre Estados, assim como suas políticas macroeconômicas. Essas relações, muitas vezes, geram controvérsias. Referidas controvérsias são dirimidas pelos foros econômicos internacionais. Existem diversos foros econômicos internacionais e não há hierarquia entre eles.

O Direito Econômico Internacional, ramo especializado do Direito Internacional Público, regula as relações jurídico-econômicas de cunho macroeconômico, entre os Estados, em face da reciprocidade dessas relações.

Um dos problemas existentes na comunidade internacional é que o Direito Econômico Internacional não é aplicado igualmente nos cinco continentes (Hernández et al., 2011). Essa falta de aplicação equânime, gera interpretações divergentes, a respeito dos tratados internacionais. Cabe ao Direito Econômico Internacional resolver essas divergências.

Não se trata de antinomia normativa, porque não há conflito de normas. Essas normas coexistem e assim deve ser. O problema é a interação entre elas. No plano internacional, não há uma autoridade política superior, dotada de coercitividade. Os criadores, assim como os destinatários da norma jurídica são os mesmos. Isso ocorre, porque os meios de produção e aplicação da ordem jurídica econômica internacional estão nos próprios sujeitos que os criam. (FUNIBER, s.d.)

Os foros econômicos internacionais regionais são criados pelos próprios tratados internacionais, por meio de seus sistemas de solução de controvérsias. Eles podem, também, ser eleitos pelas partes litigantes, signatárias dos respectivos tratados internacionais, quando não houver a primazia da jurisdição regional. Tudo conforme as disposições específicas de cada um dos acordos comerciais regionais.

A escolha por uma jurisdição econômica internacional regional pode ou não afastar a possibilidade de posterior apreciação da controvérsia em âmbito multilateral. Referida possibilidade depende da existência da primazia de jurisdição regional no respectivo tratado. Nesta seara, o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC tem primazia de jurisdição sobre os acordos comerciais sob sua administração, ou seja, a OMC detém a primazia da jurisdição econômica internacional multilateral.

Por outro lado, há diversas jurisdições econômicas internacionais regionais, formadas por vários foros econômicos internacionais regionais, divididos em Tribunais e Organizações Internacionais. Não há hierarquia entre as jurisdições regionais e a multilateral da Organização Mundial do Comércio, porque elas são concorrentes.

O problema é que isso gera um antagonismo de decisões regionais, gerando imprevisibilidade destas e insegurança jurídica. Essa situação não ocorre na Organização Mundial do Comércio, o que proporciona previsibilidade, confiabilidade, credibilidade e eficiência para todo o sistema. Além de proporcionar segurança jurídica, o que é benéfico para o comércio internacional.

O principal objetivo da OMC, com seu sistema de solução de controvérsias, é oferecer segurança e previsibilidade ao regime multilateral. Todavia, quando referidas controvérsias versam sobre acordos regionais, a solução para as disputas depende das decisões proferidas pelas diferentes jurisdições económicas regionais. A consequência é a existência de divergências ou antagonismo entre referidas decisões.

A jurisdição multilateral da OMC exerce forte influência nas jurisdições regionais, porque as lacunas e ambiguidades não são supridas apenas com base nos conceitos e regras de seus próprios Acordos Comerciais; ela estabiliza o emaranhado de normas internacionais, que formam a regulação do comércio internacional; e, por último, em razão da inevitável relação entre os diversos temas globais contemporâneos e as controvérsias econômicas internacionais.

O Órgão de Apelação da Organização Mundial do Comércio se utiliza das interpretações sistemática extensiva, bem como da construtiva, por meio das normas de Direito Internacional Público, como é o caso da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969. Dessa forma, referido órgão judicial vai buscar, nos conceitos e interpretações dos órgãos jurisdicionais de outros Organismos Internacionais, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, formas de solucionar os litígios entre seus próprios Estados-membros. Diante disso, cria sua própria jurisprudência que, por sua vez, norteará futuros litígios.

É neste sentido que a jurisprudência da OMC se torna ainda mais importante para o comércio internacional. As decisões proferidas por seu sistema de solução de controversias, são usadas por seus Estados-membros nos sistemas de solução de controvérsias regionais. Sua produção jurisprudencial não pode parar.


Metodologia

O delineamento é descritivo, de subcategoria etnográfico e natureza qualitativa. O escopo de investigação é exploratório. O estudo não é probabilístico, mas, puramente teórico-jurídico e seus resultados foram apresentados em forma de textos. Não há variáveis, assim como não há população específica ou amostra. Em termos de escopo de investigação foi usada a técnica correlacional. A pesquisa é não experimental. Os instrumentos de medição usados foram os bancos de dados de acesso ao público em geral e sites de busca acadêmica, por meio eletrônico. O método de pesquisa é longitudinal. As fontes usadas foram documentais e bibliográficas. A técnica usada foi a pesquisa em plataformas de divulgação acadêmica, por meio dos buscadores acadêmicos especializados EBSCOhost, Google Academy, ResearchGate e Academia.edu. As técnicas descritiva e explicativa foram usadas conjuntamente, no que tange aos meios bibliográficos. Foi utilizada a técnica lógico-jurídica, para fundamentar a conjugação dos artigos e princípios, constantes nos diplomas internacionais. O procedimento usado foi a pesquisa na internet, através dos sites de busca científica. O tempo da pesquisa é transversal. A abordagem foi descritiva-histórica. Em termos de análise estatística, foi feita uma análise simples por meio de conclusão.


Resultados

Os Estados-partes do Acordo Preferencial de Comércio que não figurem na relação processual do litígio internacional regional, não fazem parte da expressão “a relação entre as partes” objeto do estudo, trazida no artigo 31, § 3º, parte final, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, especificamente para fins da interpretação firmada ao final da controvérsia, entre os Estados-parte litigantes.

Os Estados-partes de um Acordo Preferencial de Comércio que tenham firmado uma interpretação entre eles, ao final de uma controvérsia econômica internacional regional, como regra, não podem usar essa mesma interpretação para interpretar um dispositivo da Organização Mundial do Comércio. Todavia, vale ressaltar que referida regra comporta exceções. Isso ocorre, porque, quando uma jurisdição regional firma uma interpretação acerca de um Acordo Preferencial de Comércio, em seu próprio mecanismo de solução de controvérsias, referida jurisprudência não faz parte do direito aplicável à OMC. 

O direito aplicável à Organização Mundial do Comércio é formado pelo conjunto de seus acordos multilaterais e plurilaterais em vigor, além das normas de Direito Internacional pertinentes. Neste diapasão, a interpretação dos acordos da OMC é feita com base na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969. Entretanto, o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC possui em sua jurisprudência, decisões que foram tomadas com base em interpretações evolutivas por parte do Órgão de Apelação. Nesta seara, referidas decisões não foram baseadas nas regras constantes nos acordos da OMC, mas, sim, em regras multilaterais advindas de outras organizações internacionais.

A base principiológica do sistema multilateral de comércio da OMC nos remete ao Princípio da Tomada de Decisão por Consenso, que deverá ser alcançado por todos os cento e sessenta e quatro Estados-membros da organização, considerado como consenso positivo, quando em sede das Conferências Ministeriais e do Conselho Geral, ambos de idêntica composição.

Em razão do funcionamento institucional da Organização Mundial do Comércio, bem como de seu arcabouço jurídico, a interpretação de seus dispositivos cabe ao Órgão de Solução de Controvérsias, composto por todos os seus Estados-membros, ao acatar, modificar ou rechaçar os relatórios dos painéis ou do Órgão de Apelação da organização, por meio do consenso negativo. Contudo, o Órgão de Apelação realizou, por mais de uma vez, a função de interpretação dos acordos da organização, apesar de não ser a sua atribuição específica, nos termos do Acordo Constitutivo da OMC. Neste ínterim, ao invés da usual interpretação textual, conforme a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, referido órgão preencheu lacunas e dirimiu ambiguidades de termos constantes nos acordos analisados, por meio de interpretação evolutiva, a fim de solucionar as controvérsias que lhe foram apresentadas. Apesar disso, referidas decisões fazem parte da jurisprudência do OSC e podem ser usadas em mecanismos de solução de controvérsias regionais, mesmo diante da primazia destas jurisdições.


Discussão e conclusões

O artigo 31, § 3º, parte final, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 é suficiente para determinar quem são as partes envolvidas nos litígios, em sede dos mecanismos de dissolução de disputas comerciais das jurisdições econômicas internacionais regionais e multilateral. Porém, a regra não é suficiente para resolver a sobreposição de normas ou mesmo a concorrência de direitos e obrigações entre os tratados internacionais das diferentes jurisdições de comércio internacional, recaindo a solução para a primazia da jurisdição.

O embate entre o fenômeno do regionalismo e a crise do multilateralismo é antigo. (Capucio, 2018) A dificuldade de criação de novos acordos multilaterais nas rodadas de negociações, em sede das Conferências Ministeriais da OMC, alimenta o fenômeno do regionalismo.

A proliferação dos Acordos Preferenciais de Comércio se deve a problemas institucionais e normativos da Organização Mundial do Comércio. (Capucio, 2017; Loures, 2020; Thorstensen et al., s.d.)

Sob o prisma normativo, o Princípio da Tomada de Decisão por Consenso é o principal gerador da fragmentação do sistema multilateral de comércio. (Capucio, 2017; Linn, 2017; Loures, 2020; Vicente, 2022; de Medeiros Fidelis, 2020; Mattoo et al., 2020; de Carvalho et al., 2018; Leão e Borgui, 2022; European Commission, 2021; de Carvalho e Salles, 2022; Thorstensen et al., 2014)

Os Estados-membros da Organização Mundial do Comércio migraram para o regionalismo, a fim de aprofundarem ou estenderem sua integração econômica, preservando seus próprios interesses macroeconômicos, bem como os interesses de seus atores econômicos.

As três exceções dos artigos XXIV do GATT-94, V do GATS e a Cláusula de Habilitação permitidas aos Estados-membros da Organização Mundial do Comércio para firmarem Acordos Preferenciais de Comércio, são discriminatórias e vão de encontro ao Princípio basilar da Nação Mais Favorecida do sistema multilateral de comércio. (de Carvalho, 2018b; Thorstensen e Nogueira, 2017; WTO, 2011)

A distorção comercial causada pelo uso excessivo dos Acordos Preferenciais de Comércio, que deveriam ser uma exceção à regra geral do sistema multilateral, contornam o direito da Organização Mundial do Comércio. (Loures, 2020; Thorstensen et al., s.d.)

O direito da OMC precisa ser adaptado aos novos tempos para sobreviver, se fortalecer e não retroceder nos avanços já alcançados ao longo das últimas décadas.

A sobreposição de normas causada pelo fenômeno do regionalismo, que engloba o spaguetti bowl e o forum shopping, fragmenta a OMC e o comércio internacional como um todo. (Thorstensen, et al., s.d.; Capucio, 2017; Loures, 2020; de Carvalho, 2019a) Referido fenômeno vai continuar ocorrendo, visto que estes recursos o estão munindo constantemente contra o sistema multilateral.

Sob o prisma institucional, o Mecanismo de Transparência da OMC é falho. (Loures, 2020; Capucio, 2018) Nesta seara, a falibilidade do Mecanismo de Transparência da OMC ocorre, porque é ele quem controla a utilização excepcional do artigo XXIV do GATT-94, do artigo V do GATS e da Cláusula de Habilitação.

A estrutura da OMC nasceu eivada de problemas em 1994, porque veio do GATT-47. Ela é ultrapassada para a dinâmica do comércio global do Século XXI. (Capucio, 2017; Linn, 2017; Thorstensen et al., 2014; Loures, 2020)

O direito material de 1947 está totalmente fora dos padrões e necessidades atuais do comércio internacional e foge aos objetivos de integração econômica e de tarifas alfandegárias dos Estados-membros da OMC.

A regra do Single Undertaking, constante no artigo IX, §1º, do GATT-94 impede o alcance do consenso nas rodadas de negociações da OMC. (Capucio, 2017; European Commission, 2021)

A proliferação dos Acordos Preferenciais de Comércio é um problema sistêmico na OMC. (Capucio, 2017; WTO, 2011; European Commission, 2021)

O bloqueio do Órgão de Apelação da OMC, em função dos reiterados vetos dos Estados Unidos para a nomeação de novos juízes, é prejudicial para o comércio internacional como um todo. (Capucio, 2017; Loures, 2020; Linn, 2017; European Commission, 2021) 

O modelo multilateral da OMC entrou em crise. Os fatores como a falta de capacidade de adaptação da OMC às necessidades do século XXI, bem como aos novos modelos de negócios, assim como às necessidades dos atores econômicos globais e, ainda, aos novos temas do comércio internacional alimentam referida crise. (Loures, 2020; Thorstensen et al., s.d.; European Commission, 2021)

A reforma normativa e institucional da OMC é necessária, para que seja preservada a segurança jurídica, a previsibilidade do sistema, a uniformidade das decisões nas soluções de controvérsias, a padronização das regras, a celeridade das negociações multilaterais, a efetividade do sistema multilateral e eficácia do comércio internacional.

A discussão sobre a legalidade do direito regional em face do direito multilateral da OMC se deve, entre outras razões, às barreiras comerciais que estão sendo levantadas pelos Acordos Preferenciais de Comércio. (Thorstensen et al., 2014; de Carvalho, 2019c)

O conflito de jurisdição entre os mecanismos de disputa dos Acordos Preferenciais de Comércio e o mecanismo da OMC é defendido por Loures (2020). Neste ínterim, discordamos, porque entendemos que não se trata de conflito de jurisdição entre os mecanismos de solução de controvérsias, mas, sim de sobreposição de normas regionais e multilaterais.

A concorrência entre as jurisdições regionais e a multilateral da OMC, no que tange aos seus mecanismos de solução de controvérsias é defendida por Thorstensen et al. (2014). Concordamos, porque entendemos não se tratar de antinomia de normas, mas, sim, de sobreposição destas.

Conclusões

Em termos de regras de interpretação de tratados internacionais firmados entre Estados, o instrumento de Direito Internacional Público aplicável é a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, que regula especificamente a matéria em seu artigo 31. O problema da sobreposição de normas entre o direito regional, por meio dos Acordos Preferenciais de Comércio e o direito multilateral, por meio dos tratados da OMC, é dirimido por interpretação textual, extensiva, evolutiva ou construtiva, com base no artigo 31 da Convenção supracitada, nos casos de lacunas, obscuridades, ambiguidades ou contradições do arcabouço jurídico da OMC.

O direito aplicável à OMC é decidido por consenso positivo de seus cento e sessenta e quatro Estados-membros, em sede das Conferências Ministeriais e do Conselho Geral, ambos de composição idêntica. De outra parte, referido direito é decidido por consenso negativo de seus cento e sessenta e quatro Estados-membros, em sede do Órgão de Solução de Controvérsias, ao adotar, modificar ou rechaçar os relatórios dos painéis e do Órgão de Apelação da organização.

A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 não faz alusão a todos os cento e sessenta e quatro Estados-membros da Organização Mundial do Comércio, quando se refere à expressão “a relação entre as partes”, na parte final, do § 3º, do artigo 31, ao regrar a interpretação de tratados internacionais e o instrumento jurídico internacional for um acordo preferencial de comércio. Não existem acordos preferenciais de comércio em que sejam partes signatárias todos os Estados-membros da OMC, ao mesmo tempo. Os acordos preferenciais de comércio englobam menor número de Estados-partes, por sua própria natureza, ao contrário dos acordos multilaterais da OMC. Em se tratando de acordos preferenciais profundos, o número de Estados-partes é menor do que a totalidade dos membros da OMC, ainda que por meio destes sejam criados megablocos de integração econômica regional.

Os Tratados de Livre Comércio têm como objetivo primordial a liberalização do comércio, por meio da redução de tarifas alfandegárias de forma recíproca entre partes signatárias. Considerados instrumentos de política externa, os TLC são usados para a eliminação de barreiras comerciais, o que permite o acesso a mercados internacionais, além de promoverem a integração econômica e a cooperação internacional.

Os Acordos Preferenciais de Comércio, por sua vez, concedem vantagens alfandegárias ou outro tipo de vantagens às partes signatárias, nem sempre de forma recíproca. Referidos acordos não respeitam o Princípio da Nação Mais Favorecida e praticam o comércio de forma discriminatória. Eles criam suas próprias regras na regulação do comércio de bens e serviços e causam impactos nos seus respectivos fluxos. Os APC possuem seus próprios mecanismos de solução de controvérsias. A OMC autoriza os acordos regionais. Ao se basearem no artigo XXIV do General Agreement on Tariffs And Trade ou GATT, podem firmar acordos de integração regional, nas formas de zona de livre comércio ou união aduaneira. No que tange aos serviços, baseiam-se no artigo V do General Agreement on Trade in Services ou GATS. Quanto aos subsídios, baseiam-se na Cláusula de Habilitação e no Sistema Geral de Preferências, para firmarem acordos preferenciais de comércio. Neste ínterim, o estudo sugere um novo levantamento do número de acordos comerciais regionais, em vigor, notificados à Organização Mundial do Comércio, no que tange à tendência de crescimento do regionalismo, em comparação com o sistema multilateral de comércio internacional.

O âmbito regional de comércio internacional formado por todos os acordos regionais de comércio, engloba os tratados de livre comércio, os acordos preferenciais de comércio e os acordos preferenciais profundos. Eles possuem seus próprios mecanismos de solução de controvérsias e regras próprias. Referidas regras se sobrepõem às multilaterais, porque regulam os mesmos temas comerciais ou novos temas não regulados na OMC. Referido âmbito é formado pelas jurisdições econômicas internacionais regionais, sem nenhuma hierarquia entre elas. O fenômeno do regionalismo, por sua vez, refere-se à proliferação dos acordos regionais de comércio, principalmente os acordos preferenciais. Referido fenômeno ocorreu em levas e a terceira está ligada às Cadeias de Valor Globais.

O âmbito multilateral de comércio internacional, por outro lado, é formado por todos os acordos multilaterais e plurilaterais sob exclusiva administração da Organização Mundial do Comércio e é mais novo do que o âmbito regional. Funciona sob uma base principiológica enxuta, clara e pré-definida, que comporta exceções. A OMC é intergovernamental, com personalidade jurídica própria diversa da de seus Estados-membros que, até o momento, são cento e sessenta e quatro. Dentro de uma estrutura permanente, o sistema multilateral é formado por órgãos em níveis decisórios diferentes, as Conferências Ministeriais, o Conselho Geral e o Órgão de Solução de Controvérsias. Referido sistema possui seu próprio mecanismo de solução de controvérsias, que não é um tribunal, mas exerce função jurisdicional e produz jurisprudência. O direito multilateral concorre com o direito regional, por isso, suas regras se sobrepõem.

Em face da existência de diferentes jurisdições econômicas internacionais regionais, que concorrem com a jurisdição multilateral da OMC, surgem decisões divergentes e antagônicas. A sobreposição de normas comerciais regionais e multilaterais, gera imprevisibilidade das decisões, o que leva à insegurança jurídica. Referidas normas podem se complementar. A jurisprudência do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC beneficia todo o comércio internacional, porque baseia-se não apenas no seu próprio direito, como também nas normas de outras organizações e organismos internacionais. As regras de interpretação do direito internacional público, conforme a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, possibilita o preenchimento de lacunas e o esclarecimento de ambiguidades, obscuridades e contradições existentes nos acordos.

O direito aplicável aos Acordos Preferenciais de Comércio não se confunde com o direito aplicável à OMC. Os Acordos Preferenciais de Comércio regulam matérias não reguladas nos acordos da OMC, ou reguladas de forma insuficiente. O resultado da prestação jurisdicional do Órgão de Apelação da OMC, é incorporado ao arcabouço jurisprudencial do Órgão de Solução de Controvérsias. Beneficiará todos os membros da OMC em futuras controvérsias, inclusive no âmbito regional. Diante disso, a interpretação firmada primeiro em uma controvérsia regional não poderá ser usada para interpretar um dispositivo da OMC, mas, a recíproca é verdadeira. A análise do Órgão de Apelação é jurídica, portanto, não se trata de aplicar o Princípio da tomada de decisão por consenso. Trata-se de aplicar normas de Direito Internacional Público, especificamente as regras de interpretação do artigo 31, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969. Ainda que referida interpretação seja extensiva ou evolutiva, a OMC cumpre uma de suas finalidades primordiais, elencada no seu Acordo Constitutivo, em face da expressa previsão de cooperação com outras organizações e organismos internacionais do Tratado de Marrakech.


Referências

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